martes, 1 de febrero de 2011

Testemunho, extimidade

                                                 Lucíola Freitas de Macêdo



1. Introdução

Desenvolverei neste trabalho, uma das questões indicadas no artigo “Sintoma, inconsciente real e testemunho” (MACÊDO, 2009, p.41-44), a saber, aquela sobre o estatuto do testemunho, e mais especificamente, sobre o que se apresenta no testemunho como “lacunar” (AGAMBEN, 2008, p.42).

Tendo como objetivo inicial, lançar algumas luzes sobre a noção de testemunho, proponho, na esteira das elaborações de Antônio Teixeira em “Psicanálise e ideologia: a violência da representação”, investigar o que significa se servir da linguagem, para se posicionar diante da violência de uma ordem hegemônica, uma vez que o próprio recurso da linguagem já se encontra comprometido com algum tipo de restrição normativa imposta violentamente? (TEIXEIRA, 2010, p.161), e ademais, relançar a pergunta de Raul Antelo em “Subjetividade, Extimidade”, a saber, de que modo o sujeito poderá captar seu gozo irredutível, singular, contingente e fora de sentido, em um texto? (ANTELO, 2009.2, p.54).

O trabalho sobre esta questão terá como contexto mais amplo, aquele dos testemunhos gerados sob a égide do advento dos campos de concentração nazistas, no contexto da Segunda Guerra Mundial, e será realizado em duas perspectivas distintas, mas não antagônicas, nem mesmo excludentes: a primeira, tomando o testemunho enquanto acontecimento político, e a segunda, abordando o testemunho do lado do sujeito.

Em psicanálise estas duas perspectivas se articulam, especialmente se levarmos em conta a proposta de Jorge Alemán, em Lacan, la política em cuestión...: “o sujeito, na radical solidão do sinthoma... sim, pode inventar outra maneira de interpretar o “para todos” que sustenta o mundo. Considero isto um fato político no sentido mais radical do termo”ALEMÁN, 2010a, p.21.

Ao abordar a questão, me orientarei propondo uma interlocução entre Jacques Lacan, e Giorgio Agamben. Para tanto, recorrerei, especialmente, ao testemunho escrito por Primo Levi, Os afogados e os sobreviventes (LEVI, 2004), objeto privilegiado sobre o qual Agamben conceitua o testemunho em O que resta de Auschwitz (AGAMBEN, 2008), sob uma perspectiva eminentemente política, e através da qual extrai amplas conseqüências, quanto as teses formuladas anteriormente em Homo Sacer, o poder soberano e a vida nua. Das três teses ali expostas, interessam-nos mais de perto: aquela que preconiza o estado de exceção como zona de indistinção entre exterior e interior, exclusão e inclusão; e a tese do campo de concentração como paradigma biopolítico do Ocidente na contemporaneidade (AGAMBEN, 2007, p.187-194).

Neste contexto, não deixaremos de mencionar as críticas geradas pelas teses de Agamben no âmbito da teoria política, tais como a crítica empreendida por Ernesto Laclau, (LACLAU, 2008, p.107-123), e aquela feita por Jorge Alemán, em “Derivas sobre a inserção - desinserção” (ALEMÁN, 2009, p.29-45).

È digno de nota, que a abordagem da questão do testemunho a partir de uma simples oposição entre interior X exterior, inclusão X exclusão, vítima X algoz, mostra-se limitada, tal como bem apontam Primo Levi e Giorgio Agamben, quando se trata de localizar e problematizar o que está em jogo no testemunho, mais especificamente, quando se trata de abordar sua estrutura “lacunar” (AGAMBEN, 2008, p.42). Nossa hipótese é que a noção de extimidade, de autoria de Jacques Lacan, permitirá avançarmos na discussão sobre o testemunho e sua lacuna.

O neologismo “extimidade” foi empregado por primeira vez por Lacan no Seminário 7, a ética da psicanálise (LACAN, 1991, p.173 ). Posteriormente, no Seminário 11, os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (LACAN, 1988, p.249-260 ), ele desenha sua topologia, e extrai algumas consequências em relação a transferência e suas relações ao campo do Outro. Atualmente, esta noção tem sido amplamente discutida, especialmente a partir da publicação de Extimidad, por Jacques-Alain Miller ( MILLER, 2010).

Recorremos à noção lacaniana de extimidade, por considerá-la crucial para o esclarecimento da complexidade do que está em jogo quanto a nossa questão, e mesmo, por partir da hipótese que esta fornecerá elementos que nos permitam lançar novas luzes sobre nosso problema, justo no ponto em que problematiza o uso simplista dos binômios interior X exterior, inclusão X exclusão, vítima x algoz. A noção de extimidade inaugura uma perspectiva diferente daquela que opera apenas através de pares de oposições.

O êxtimo não se localiza nem exclusivamente dentro, nem fora. O que está em jogo na extimidade, não é aquilo que, partindo do juízo de atribuição freudiano, associaria o que é estranho ao ego, ao exterior e ao mau. A extimidade não vem do exterior, mas do Outro, enquanto o mais estranho, e ao mesmo tempo, o mais íntimo. Eis o paradoxo: é o mais próximo, o mais interior, sem deixar de ser exterior ( MILLER, 2010, p.13).

Vejamos o comentário de Lacan no Seminário 7, a propósito do fenômeno da anamorfose na pintura, e tributário do termo: “Pode ser que aquilo que descrevemos como sendo esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa, esclareça para nós o que resta ainda como questão, ou até mesmo como mistério” (LACAN, 1991, p.173 ).

A questão se torna ainda mais complexa, na medida em que a extimidade depende, para se constituir, da dimensão da alteridade, desdobramento ao qual Lacan se dedica no Seminário 11, e momento em que conceitua neste “lugar central”, daquilo que é êxtimo, um objeto paradoxal, o objeto a (LACAN, 1988, p.254 e 259).

O objeto a não é a Coisa, mas um “resto de Coisa” ( MILLER, 2010, p.447). Este resto é o resultado do apagamento, da morte da Coisa, de sua significantização. O que Lacan escreve como objeto a, não é a Coisa, mas o que dela resta da operação do Outro. A extimidade indica o que esse resto de Coisa tem de heterogêneo em relação ao Outro, e ao mesmo tempo, de localizável a partir do Outro. Em psicanálise, só alcançamos este resto de Coisa a partir do Outro ( MILLER, 2010, p.447).

Daí problematizarmos, neste estudo, a figura do mulçumano, de Primo Levi, como uma das figuras da extimidade, tal qual abordaremos a seguir. Neste ponto, caberá diferenciar o relato de uma exclusão, de um testemunho que é sensível a um ponto de extimidade.

Defendemos que o testemunho de Primo Levi, sim, possa vir a constituir esta função, ao mesmo tempo em que ratificamos, a partir desta hipótese, que, ainda que a circunstância na qual Lacan tenha constituído este neologismo, remeta a das Ding, na confluência entre Freud e Heidegger, não convém tomar a Coisa e a noção de extimidade como sinônimos.

Quando se trata do campo da extimidade, o estranho, a Coisa, o objeto a, não localizam simplesmente algo ejetável, mas aquilo que é excluído dentro, no âmbito mesmo da organização significante. Há uma enorme diferença pensarmos o estranho como introjetável, ou ejetável, e o concebermos enquanto excluído no interior.

É nessa perspectiva que nos interessa relançarmos uma discussão sobre os fenômenos do racismo e da segregação, na medida em que partimos da hipótese de que estes se configuram como respostas ao não reconhecimento, ou a não constituição do campo da extimidade, e mesmo, como uma tentativa de elidir, ou de ignorar o ponto de extimidade, mais que de increvê-lo.



2. Biopolítica

O contexto em torno do qual Giogio Agamben desenvolve suas hipóteses e sua argumentação em torno do tema do testemunho tem como pano de fundo o testemunho dos sobreviventes ao extermínio dos judeus nos Campos de Concentração ao longo da II Guerra Mundial, e mais especificamente, um dos testemunhos do escritor italiano Primo Levi, que ao contrário da posição de silêncio, adotada por muitos de seus amigos, conta sem parar a todos o que lhe coube viver, tornando-se escritor “unicamente para testemunhar” (AGAMBEN, 2007, p.26).

O que resta de Auschwitz começa com uma advertência, qual seja, aquela de informar ao leitor que se o problema das circunstâncias históricas (materiais, técnicas, burocráticas, jurídicas...) do chamado Holocausto [1] parecem, em um quadro mais geral, suficientemente esclarecidas, “bem diferente é a situação relativa ao significado ético e político do extermínio..., sua atualidade”...“tais acontecimentos, que podemos descrever e ordenar cronologicamente um após outro, continuam sendo singularmente opacos quando realmente queremos compreendê-los” (AGAMBEN, 2007, p.19,20).

Em sua advertência, Agamben traz à luz um primeiro fragmento de testemunho, atribuído a Salmen Lewental, membro do Sonderkommando [2] , daquilo que no capítulo “O arquivo e o testemunho” se constituirá sob e égide do lacunar: “Nenhum ser humano pode imaginar como ocorreram precisamente os acontecimentos, de fato, é inimaginável que possam ser descritas exatamente como aconteceram nossas experiências...” (AGAMBEN, 2007, p.20). Sobre o qual agrega: “Não se trata aqui, obviamente, da dificuldade que experimentamos toda vez que procuramos comunicar a outros as nossas experiências mais íntimas. A dificuldade tem a ver com a própria estrutura do testemunho” (AGAMBEN, 2007, p.20) [3].

Tal estrutura comporta um caráter paradoxal. Por um lado, aparece como a única coisa verdadeira, e por outro, tal verdade é, na mesma medida, inimaginável e irredutível aos elementos que a constituem: uma realidade que excede necessariamente seus elementos factuais – esta é a aporia de Auschwitz, segundo Agamben.

Tal aporia, é também, a própria aporia do conhecimento histórico, marcado pela não-coincidência entre os fatos e a verdade, entre constatação e compreensão (AGAMBEN, 2007, p.20). É, inicialmente, na afirmação desta não-coincidência, que o autor irá cunhar a estrutura lacunar do testemunho.

Agamben parte da premissa que os sobreviventes davam testemunho de algo impossível de ser testemunhado. A partir de sua premissa constituiu seu método: abordar o testemunho interrogando sua lacuna, tentando escutá-la, buscando identificar o lugar e o sujeito do testemunho. Este método, constitui-se como um modo de escutar o não-dito (AGAMBEN, 2007, p.21).

Sua hipótese mais ampla é de que a lógica que rege o campo de concentração se atualiza na biopolítica contemporânea, embora isso permaneça velado. O campo, é o lugar em que desaparece radicalmente toda distinção entre próprio e impróprio, entre possível e impossível. Nele, os deportados existem cotidiana e anonimamente para a morte (AGAMBEN, 2007, p.82) [4] . Já não se pode distinguir entre a morte e o simples desaparecimento, entre o morrer e “o ser liquidado”, pois ali a morte é trivial, burocrática e cotidiana.

A degradação da morte em nosso tempo é analisada por Agamben na esteira das reflexões de Michel Foucault a propósito da biopolítica, tomando como paradigma o Estado nazista, ao operar uma absolutização sem precedentes do biopoder. Ali, o fazer viver se cruza e se confunde com uma absoluta generalização do poder soberano de fazer morrer, de tal forma, que a biopolítica acaba por coincidir com uma “tanatopolítica” (AGAMBEN, 2007, p.89), terreno fértil para todas as formas de racismo, especialmente, do racismo biológico. É isto o que está e jogo, para Agamben,

no Reich nazista, por meio de sua legislação de 1933, sobre a “proteção da saúde hereditária do povo alemão” (AGAMBEN, 2007, p.90).

Deste modo, o corpo político tecido no seio do povo, se rompe sucessivamente até o ponto de se reduzir ao corpo biológico enquanto população, portadora de traços biológicos a serem exterminados, regulados, controlados, por técnicas e saberes específicos.

Agamben analisou e explicitou o que está em jogo nesta engrenagem da biopolítica do racismo, cujo produto é o chamado “mulçumano”. O sistema da biopolítica nazista tornou os campos não somente o lugar de morte e de extermínio, mas principalmente, o lugar de “produção” do mulçumano, enquanto última “substância biopolítica” isolável no continuum biológico. Este acento na cadeia mulçumano-substância-produto-biopolítica, é, nos parece, o argumento forte que fundamenta e permite, para Agamben, a afirmação da tese do campo de concentração como paradigma biopolítico do Ocidente (AGAMBEN, 2002, p.187).

Os “mulçumanos”, ou submersos, aos quais se refere Levi no título de seu livro, são a multidão anônima, continuamente renovada, e sempre igual... que estão tão vazios que nem mesmo podem sofrer. Levi escreve que eles permeiam sua memória como uma presença sem rosto, aquela de um homem macilento, cabisbaixo, de ombros curvados, em cujo rosto, em cujo olhar, não se possa ler o menor pensamento (AGAMBEN, 2008, p.52, apud LEVI, 1998, p. 91). O mulçumano habita o umbral extremo, um “não-lugar”, entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano. Este umbral recebe, no testemunho de Levi, o nome de “zona cinzenta” (LEVI, 2004, p.31-59).

Para dizer deste umbral, Levi interroga a tradição maniqueísta das escolas quanto ao ensino da história popular, que em sua tendência simplificadora, evita os meios-tons e as ambiguidades: “são propensas a reduzir a torrente dos acontecimentos humanos aos conflitos, e os conflitos a duelos, nós e eles, os atenienses e os espartanos... e no fim da partida haverá os derrotados e os vencedores”. Na zona cinzenta se precipitava tanto o terrível, quanto o indecifrável, “não era conforme nenhum modelo, o inimigo estava ao redor, mas também dentro, o “nós” perdia seus limites”... (LEVI, 2004, p.31,32)... essa zona, “possui uma estrutura interna incrivelmente complicada, e abriga em si o suficiente para confundir nossa necessidade de julgar”, pois, “quanto mais forte a opressão, tanto mais se difunde entre os oprimidos a disponibilidade de colaboração com o poder”, casos para os quais “ é imprudente precipitar-se emitindo um juízo moral” (LEVI, 2004, p.36,37).



3. O testemunho e o político

Interessa-nos, especialmente, elucidar as conseqüências e o alcance da hipótese de Agamben, de que o testemunho apareça como modo lacunar e paradoxal de haver-se, sim, com o horror vivido nos campos de concentração nazistas, mas também com os efeitos “concentracionários” da chamada biopolítica contemporânea, que em nome de um novo higienismo produtivista, bem poderá funcionar como matriz ideológica das novas formas de racismo e segregação, abordadas na segunda metade do século XX por Foucault (FOUCAULT, 1999). Este é o ponto onde o testemunho poderá interessar, quanto ao que está em jogo na experiência analítica.

Lacan, não deixou de estar sensível a esta problemática, tal como é possível conferir em sua “Proposição de 9 de outubro de 1967”, momento em que constitui o testemunho do final de análise, e o dispositivo do Passe, como um modo de interrogar a formação do analista. Para Simone Ribeiro, Lacan convocaria, através da “Proposição”, tanto a psicanálise quanto os psicanalistas, a operarem com o real por uma via que não seja nem a da religião, nem a do mito, nem a do delírio, nem a da produção de uma ordem hierárquica, nem a de um humanismo que recobre e isola, nem a do campo de concentração. Ele apostaria, na via do testemunho, enquanto possibilidade de reconhecimento de uma lacuna estrutural e irredutível (RIBEIRO,1999, p.94) [5].

Aqui cabe uma pequena digressão sobre o momento histórico diretamente relacionado ao panorama do pensamento europeu, do qual Lacan, e também Foucault, foram expoentes, na França dos anos 60-70. De acordo com Enric Berenguer, neste período, tanto Lacan, quanto Foucault, em seus diferentes campos epistêmicos, estavam trabalhando a noção de discurso, que começa a ganhar um importante alcance no pensamento europeu a partir dos anos 60, ao mesmo tempo em que se desenha, neste mesmo panorama, uma série de críticas à teoria lingüística de Saussurre, por seu excessivo formalismo. Há nesse contexto, ainda, uma série de autores que intervém com discussões carregadas de conseqüências políticas, tais como Mijail Bajtin, na Rússia, e Antonio Gramsci, na Itália, argumentando que a língua é inseparável do discurso, uma vez que o discurso cumpre a função de ancorar a língua, como sistema formal, em uma realidade histórica e social, “enquanto realidade encarnada, efetuada, pronunciada, que tem conseqüências... porque produz efeitos de autorização ou desautorização, entre outros” (BERENGUER,2009, p.23). São estes alguns dos antecedentes de Foucault, em A Arqueologia do saber, de 1969, e de Lacan, no Seminário 17, o avesso da psicanálise, ambos pronunciados no mesmo ano.

É, portanto nesse contexto, que Lacan irá propor uma nova via para abordar a tensão entre o significante e o discurso, incluindo nesta problemática, o elemento pulsional, não problematizado, todavia, por Foucault. Lacan defende que as mudanças de regimes discursivos são também mudanças em regimes de satisfação. Há algo do nível pulsional que se apresenta mais articulado ao simbólico do que parece, mas não tanto ao nível do significante, mas do próprio discurso (BERENGUER,2009, p.31). Isto posto, é possível inferir, com Berenguer, que a história do discurso no plano político e cultural, se enlaça à história dos sintomas, que por sua vez traduzem posições do sujeito frente ao discurso, como também modificações no regime de gozo, e nas formas de viver à pulsão (BERENGUER,2009, p.34).

É interessante notar que o testemunho para Agamben, nada tem a ver com a obrigatoriedade da comunicação, e mesmo, ao contrário, constitui-se como um entrave e obstáculo ao dever comunicar: “Enquanto se fundamentam em um pressuposto tácito(nesse caso, de que alguém deve falar), todas as refutações deixam necessariamente um resíduo, na forma de uma exclusão” (AGAMBEN, 2008, p.72). Para ele, a simples aquisição da faculdade de comunicar não obriga de modo algum a falar, e mesmo, só se a linguagem não for sempre comunicação, só se ela der testemunho de algo que não pode testemunhar, o falante poderá experimentar algo semelhante a uma exigência de falar (AGAMBEN, 2008, p.72).

Alemán propõe pensarmos o “Comum”, não a partir de um fundamento identitário, mas, a partir da solidão sinthomática, em que o “Comum”, diferentemente do “para todos”, não está dado de antemão, senão na contingência que se pode encontrar na arte, no amor, na amizade, e também na ordem especificamente política, e agrega, ainda, que sua única constância material é o encontro real com alíngua (ALEMÁN, 2010a, p.22).

Para Alemán, a originalidade de Agamben, é que ele permite articular diferentes modos de não inscrição simbólica, desde o mulçumano dos campos de concentração, até o contemporâneo estrangeiro exilado, que erra de aeroporto em aeroporto, enfim, permite articular as diferentes figuras do hommo sacer, ao discurso do mestre moderno (ALEMÁN, 2010b, p.40). Objeta, entretanto, o que chama de extremismo de Agamben, ao firmar que o estado de exceção, que o campo de concentração, tenha se tornado uma “norma” da vida contemporânea.

É também nessa direção que Ernesto Laclau problematiza a tese de Agamben, de que a relação política original seja a exclusão, argumentando que talvez Agamben não tenha considerado o problema do inscritível/ não inscritível, e do interior/exterior em toda sua amplitude (LACLAU, 2008, p.113), ainda que tenha clareza sobre a complexidade do vínculo entre o exterior e o interior (LACLAU, 2008, p.109). Problematiza ainda, a tese de que não seja mais a cidade, mas o campo de concentração, o paradigma biopolítico fundamental do ocidente, uma vez que a redução da vida à vida nua, e do homem ao homo saccer, só se apresentariam em circunstâncias extremas, não podendo, por isso, serem consideradas como um padrão oculto da modernidade. Objeta ainda, que estar mais além de toda exclusão e de toda soberania, significaria estar mais além da política. Laclau lê, nas entrelinhas do texto de Agamben, o mito de uma sociedade plenamente reconciliada, o que o levaria a depreciar as diferentes opções políticas das sociedades contemporâneas, fechando-as em uma unificação “essencialista”, e atribuindo ao campo de concentração seu destino secreto. Ao invés disto, Laclau aposta numa permanente desconstrução da lógica das instituições políticas, através da localização de áreas em que as formas de luta e resistência sejam possíveis. (LACLAU, 2008, p.122,123).

Para Alemán , a divisão do sujeito é um divisão inerente também à estrutura coletiva (ALEMÁN, 2010b, p.42). Se o acontecimento político, enquanto contingente, é impregnado de angústia, trauma, solidão; e a política, por sua vez, se constitui enquanto ideais, semblantes, e discurso do mestre, o vazio irredutível, não estaria no acontecimento em si, mas no hiato que existe entre o acontecimento político e a estrutura política (ALEMÁN, 2010c, p.103). Perguntamos então, onde está a lacuna? Podemos inferir, com Alemán, que ela está entre a política, e o político.



4. Testemunho e extimidade

Miller explicita que a política poderá funcionar como um envoltório da extimidade, sempre que recobrir o hiato indelével da identidade de si, consigo mesmo, fazendo com que a tensão, e mesmo a opressão próprias ao ponto de extimidade, seja sentida como vinda do unicamente do exterior ( MILLER, 2010, p.27).

Lacan, objeta, quanto a crítica da história, que a propósito do nazismo, haveria algo profundamente mascarado. Afirma “que nenhum sentido de história, fundado nas premissas hegeliano-marxistas, é capaz de dar conta dessa ressurgência, pela qual se verifica a oferenda, a deuses obscuros, de um objeto de sacrifícios, é algo que poucos sujeitos podem deixar de sucumbir, numa captura menos monstruosa” (LACAN, 1988, p.259).

Ao que interrogamos: o que haveria, nesses poucos sujeitos, que o fariam não deixar-se sucumbir? E porquê tantos, quase todos, sucumbiriam?

Quanto a primeira questão, alguns que escreveram e testemunharam, tais como Primo Levi, Aharon Appelfeld, Jorge Semprún, Imre Kertèsz, entre mais alguns, constituíram através de sua escrita, mais não somente, um testemunho singular. Quanto a segunda questão, talvez mais inquietante, Lacan agrega que “o sacrifício significa que, no objeto de nossos desejos, tentamos encontrar o testemunho da presença do desejo desse Outro”, ao qual Lacan chama de Deus obscuro. É a essa posição limite, na qual para Lacan “o homem só pode esboçar sua situação, num campo que seria de conhecimento reencontrado, se tiver antes preenchido o limite que, como desejo, ele se acha acorrentado” (LACAN, 1988, p.260).

Indagamos, se não seria justamente desta posição-limite, que adviria o ponto de extimidade, que por sua vez, permitiria sua enunciação em um testemunho.

Acreditamos que, a vida nua, produto da biopolítica, problematizada por Agamben em O poder soberano e a vida nua, proliferaria não a extimidade, mas a impossibilidade de sua constituição, ou seja, uma ejeção e exclusão absolutas, no lugar de uma extimidade que não se constitui, fracassa. A vida nua, portanto, nada teria a ver com o “resto de Coisa”, ao qual Lacan atribui a extimidade. A produção do mulçumano seria factível, somente onde não há resto de Coisa, onde há a Coisa em seu estado puro, enquanto pura cultura da pulsão de morte. O mulçumano seria, nessa perspectiva, não uma figura da extimidade, mas encarnação da pura ejeção.

Vale lembrar, o que aponta Miller quanto ao problema da segregação e do racismo: é preciso interrogar a tolerância ou intolerância, mais além do campo dos ideais, no campo da tolerância ou intolerância ao gozo do Outro. Se o problema parece insolúvel, “é porque o Outro, é Outro dentro de mim mesmo. A raiz do racismo, nessa perspectiva, é o ódio ao próprio gozo” ( MILLER, 2010, p.55).

A partir deste percurso, somos levados a propor o exercício de diferenciar o que podemos chamar de uma narrativa da exclusão, de um testemunho que se enuncia levando em conta um ponto de extimidade. As narrativas de uma exclusão, apoiadas no plano identitário, por um lado; e o testemunho da extimidade do gozo, por outro. No segundo caso, teríamos um tipo de lacuna diferente do primeiro, não a lacuna produzida por uma pura ejeção, mas aquela da extmidade do gozo, ponto de torção entre exterior e exterior, e daí, seu caráter inomeável e impronunciável ( MILLER, 2010, p. 171).

Deste modo, acreditamos que tenha sido Levi, e não o “mulçumano”, aquele a fazer o percurso da Coisa, do sem-nome, do não-lugar, ao resto de Coisa, ou seja, ao êxtimo. Ele o faz através de seus testemunhos [6] , e de sua enunciação, especialmente, quando responde às cartas dos leitores alemães, selecionadas e publicadas no capítulo VIII de Os afogados e os sobreviventes (LEVI, 2004, p.143-169).

Neste capítulo, relata que por ocasião da tradução e publicação, em 1959, na Alemanha Federal de seu primeiro testemunho, Se questo è um uomo, foi tomado de uma emoção violenta e nova, e que isso tinha a ver com testemunhar o que nele, não se calava, aos alemães. A vingança não o interessava. Ao ser convidado pelo editor para escrever o prefácio, hesitou, e acabou recusando. Sentiu-se tomado por um embaraço confuso, por uma repugnância, um bloqueio emotivo que cortava o fluxo das idéias e da escrita. Pediam-lhe que acrescentasse ao testemunho um apelo direto ao povo alemão, que subisse à tribuna, que de testemunha, passasse a juiz. Agrega que isso constituía uma série de tarefas que o ultrapassavam, e que de bom grado devolveria aos leitores, fossem eles alemães, ou não. Escreveu ao editor dizendo que não se sentia em condições de escrever um prefácio para seu testemunho, e propôs-lhe uma solução indireta: antepor ao texto o trecho de uma carta de agradecimento, escrita ao fim da laboriosa colaboração entre ele próprio, e seu tradutor, com o qual manteve, ao longo do trabalho, uma relação, ao mesmo tempo de suspeita e de confiança. Eis desta carta, alguns trechos:


“E assim terminamos: estou contente por isso, satisfeito com o resultado, agradecido ao senhor, e ao mesmo tempo um pouco triste. Como compreenderá, é o único livro que escrevi, e agora que acabamos de verte-lo para o alemão sinto-me como um pai cujo filho chegou a maioridade e vai embora, e dele não se pode mais ocupar.

Mas não é só isso. O senhor terá talvez percebido que para mim o Lager, o fato de ter escrito sobre o Lager, foi uma importante aventura que me modificou profundamente, me deu maturidade e uma razão de vida. Talvez seja presunção: mas hoje eu, o prisioneiro número 174517, por seu intermédio, posso falar aos alemães...

Jamais nutri ódio em relação ao povo alemão, e, se tivesse nutrido, teria me recuperado disto agora, depois de tê-lo conhecido. Não entendo e não suporto que se julgue um homem não por aquilo que é, mas pelo grupo ao qual lhe acontece pertencer...

Mas não posso dizer que compreendo os alemães: ora, algo que não se pode compreender constitui um vazio doloroso, um aguilhão...”.

(LEVI, 2004, p.148,149)


Podemos dizer que o testemunho foi, no caso de Levi, o que lhe permitiu contornar um ponto de real, pela via da escrita e da enunciação, através da constituição de um lugar de extimidade.

Para concluir, evoco, o que certa vez li em algum escrito de Lacan, mas já não lembro onde, ou quando: isso que se escreve na minha língua se lerá na língua do Outro.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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ALEMÁN, J. Lacan, la política en quastión: Conversaciones, notas y escritos. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2010a.

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LACAN, J. O Seminário – Livro 7: A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

_______. O Seminário – Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2.ed.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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[1] Termo criticado com veemência pelo autor, como também por Primo Levi, p.37-38.
[2] Na fase final do extermínio, em Auschwitz, os deportados eram levados para a câmara de gás por um esquadrão composto pelos próprios companheiros, chamado de Sonderkommando, que se incumbia também de carregar para fora os cadáveres, lavá-los, retirar-lhes os dentes e introduzi-los nos fornos crematórios.
[3] Grifo nosso.
[4] Remete-se nesta passagem ao ser-para-a-morte heideggeriano.
[5] Sobre este ponto, remeto o leitor à Disserertação de Mestrado de Simone Pinho Ribeiro, Lacan e o campo de concentração, na qual a autora faz uma ampla e instigante análise sobre este ponto.
[6] Os testemunhos foram mais de um. O primeiro, Se questo è um uomo, foi publicado, pela primeira vez, em 1947. Para maiores detalhes, vale consultar AGAMBEN, 2008, p.55.